À procura do Extra-Ordinário

            Por Dany  

           Tio Miguel sempre foi desses que guarda certa forma peculiar de olhar o mundo. Pai de melhor amiga, pra quem não teve um, era parte da família. Seu jeito gentil e companheiro era imprescindível para os que estavam a sua volta. No entanto nunca foi desses de aceitar facilmente algumas imposições. Mesmo formado, não tinha emprego fixo e, dentro de casa, chefe não era muito bem o seu papel. Alguns pontos finais foram colocados e ele foi ‘s’embora’, viajou. Fora procurar Passárgada talvez…

            Dia desses foi encontrado por aí, dormindo na calçada. Amarelo, banguelo. Não precisa dizer que desta vez o álcool já circula tanto quanto sangue. Faz tempo que o hábito da dosezinha tomou conta. Só que agora o escape virou rotina. Triste destino dos que não se enquadram em certa sociedade, ou melhor, no famigerado reino do capital?

            Talvez. Uns (acham que) optam por não se enquadrarem; outros não têm escolha. O certo é que os que sobrevivem precisam abrir a válvula e, pelo menos de vez em quando, fugir do que oprime seu tempo, das horas que não lhe pertencem, do tripallium.

            Os mais românticos preferem o suicídio. Já os menos utópicos desenvolvem técnicas para repor pequenas e esparsas alegrias. Caso do tio Miguel que talvez tenha encontrado ‘na danada’ uma forma de se integrar mais por aqui.

            A gente sabe que no bar encontramos os nossos, aqueles que compartilham as doses, as alegrias, o dedinho de prosa e até as lamentações. Sensação sutil e passageira de ‘liberdade’. Até dizem que “no bar todo mundo é igual”.

            Existe sempre um impulso por encontrar formas que, de alguma maneira, nos reponha a ânsia de trocar quaisquer poucas palavras, de ter um interlocutor, de se sentir acolhido, do coletivismo e solidariedade tão ausentes.

            Até poderia ser cômico se não fosse trágico. Tem tanta empresa especializada na tecnologia pra facilitar nossa comunicação. Afinal de contas, na labuta nossa de cada dia, por vezes a gente se sente muito sozinho. Ainda bem que existem os celulares. E até para Brecht – que chegou a pensar na revolução do rádio – ‘ficou pequeno’, imagine o quanto se surpreenderia hoje.

            Tudo bem. É possível matar a saudade dos amigos; pelo conversador, é claro. Incrível a rica possibilidade que os e-mails nos oferecem. E agora tem chat com vídeo. Assim dá pra conversar (digitadamente ou por microfone) e ainda ver com quem se fala, graças as webcam!

            Para alguns desafortunados que não possuem tantos aparatos, não há desespero. A prefeitura até disponibiliza internet em alguns centros (na periferia também tem) e aí posso ver o meu Orkut e ficar por dentro das atualizações dos perfis e imagens (ou seria imagético perfil?) dos meus 367 colegas. Tem ainda lan house pra qualquer emergência. Andam dizendo que checar e-mail ou navegar pela rede virou compulsão. Fazer compras ou aperfeiçoar o corpo no culto diário nas academias de ginástica são outros exemplos dessas ‘manias’. E esses dias li que compulsão não era vício. Engraçado, tão semelhante… Vício é coisa de drogado.

            Esse pessoal viciado em beber e se drogar chegam a extremos de felicidade que não é de bom tom para tal sociedade. Eles até cantam e dançam e brincam e brigam e têm alegria com coisas banais. Definitivamente um problema, é preciso tratá-los.

            O tio Miguel bem que tentou escapulir: ia pra padaria, foi pra uma microcidadezinha e, ao cabo, escolheu a solidão. Mas não renunciou a companhia do copo. Foi ver se enxergava diferente, se atraía olhares menos opressores. Foi resgatado a tempo. Algumas instituições se disponibilizam para cuidar dos viciados: desintoxicação, conscientização, abdicação, recalcamento…

            Porém, como já disse, temos um leque de possibilidades para fugir da lassa rotina. Todas muito bem enquadradas no sistema. Pensam em tudo, parece que estão em nossas cabeças. E não é que acertaram em cheio meu gosto? A ciência publicitária é especialista em “despertar” nosso próprio gosto. Já viram aquele recém-lançado carro, alguma coisa Adventure? Perfeito pra fazer viagens radicais, trilhas… Perfeito pra mim. Com um carro desses fujo do tráfego de São Paulo e me meto a desbravar a natureza.

            Falando assim, parece até que todas as alternativas de fuga podem parecer muito excêntricas a ponto de se tornarem vício ou compulsão. Para os menos radicais, dá pra ficar em casa, no conforto do sofá assistindo à novela, sempre com ótimos personagens pra nos entreter. Truffaut foi tão mais ousado e inclusive já filmou a interação do telespectador com a TV. Visionário!

            Individualismo e isolamento fazem mal à saúde, podem até gerar probleminhas patológicos, seja vícios ou compulsões.

            Mas… cadê meu tempo para poder me encontrar com todos os meus amigos? Cadê meu tempo pra escrever o que eu quero, meu tempo pra cantar alto, de dançar até doer o pé, de abraçar bem apertado e beijar demorado, de fazer “samba e amor até mais tarde”? Ah! meu tempo de ler poesia, de ir ao cinema, de ouvir estórias, de ficar de papo pro ar vendo as nuvens passar e de ficar no bar até o sol raiar.

            Passaram a mão no meu (nosso) tempo! E o remoto controle não permite subverter a programação. As brechas precisam ser muito bem calculadas.

            Como preciso de algum dinheiro, vendo meu tempo. Escrevo sobre livros que não li, mas aconselho que os outros leiam. Corrijo redações de alunos de outros professores. Não lhes dou aula, mas corrijo seus textos que foram orientados por professores que não corrigem o que ensinaram. Aliás, nem os conheço. Fragmentadas essas formas de se vender o tempo, não é?

            Há pouco, ganhei mais uma forma de controlarem meu tempo. Tenho um bichinho que quer mamar de 3 em 3 horas, que quer minha atenção 24 horas e que, pra pedir (ou mandar) só sabe chorar. Eita comunicaçãozinha difícil. Como não conheço nenhuma empresa que tenha desenvolvido nada pra facilitar esse diálogo? A pequena ditadora do meu tempo pelo menos me oferece algo em troca: me desperta novas formas de enxergar as coisas. O infantil jeito de olhar o mundo, de se surpreender com coisas que já são tão ‘despercebidas’. Devolve-me o entusiasmo e a sede de viver, de reencantar a vida. Calculando bem, acho que saio ganhando. Produzir alguns litros de leite e disponibilizá-lo de hora em hora pra um bebezinho fofinho que esquenta o meu colo e vez ou outra abre um sorrisinho que logo me desmonta não é nem de longe tão ruim assim. Energia suga, é verdade, mas todo dia aprendemos a negociar bem.

            Com tudo isso, a indispensabilidade do escape é reafirmada. As várias formas que já descrevi, acho que pratico um pouquinho de todas. E discordo dos suicidas porque a poesia sempre me lembra: “A soma da vida é nula. / Mas a vida tem tal poder: / Na escuridão absoluta, / como líquido circula”. Sábio Drummond.

            E, cada dia mais, vejo que o Extra-Ordinário reside na própria recusa do ordinário, na urgência do caráter destrutivo, “aquele que transforma o existente em ruínas, não pelas ruínas em si, mas pelo caminho que passa através delas”. (Benjamin)

2 Comentários

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2 Respostas para “À procura do Extra-Ordinário

  1. A "vida em cacos" e o trabalho artesanal

    Ôh Dany,
    eu ia brincar que a seção “fragmentos”, para o cenário que vc descreveu, não tá dando… porque o negócio, eu diria, está “em cacos”. Pronto, fica aí a piadinha.
    Mas o problema é que a brincadeira é séria. A sensação de ter a “vida em cacos”, ou em fragmentos, talvez seja uma unanimidade entre aqueles que não podem dispor de seu próprio tempo e são obrigados ao amargo inelutável de sujeitarem-se à tarefas que não lhes trazem qualquer satisfação; a maior parte da humanidade se insere aqui, portanto.
    Com todo respeito, e mesmo levando em consideração às iniciativas de reversão do quadro, acho que o estágio de desagregação e a falta de quadros de sociabilidade próprios são tais que nós nem sabemos por onde começar.
    Penso que o desafio está em encontrar formas de reatar esses fragmentos, pô-los um a par do outro, restaurar, ainda que minimamente, espaços comuns de interlocuções: uma espécie de “fala que eu te escuto”, rs (e não é a toa que as Igrejas evangélicas e pentecostais proliferam por todas as partes). Fazer saber que os isolamentos e as sensações de perda de controle da própria vida não são casos isolados – de mentes insanas ou psicóticas – e que provavelmente estão ligados a uma realidade que lhes é comum.
    É mesmo, como já disse noutras conversas, um trabalho artesanal a que nos propomos realizar; antes de se pensar em mobilizar massas e alcançar graus elevados de consciência política.

    Por enquanto, viva o líquido que circula; o do poeta e o do Tio Miguel!

    Abraços,

    Taiguara

  2. Anônimo

    Dany, gostei do teu texto por vários motivos, até porque em muitas coisas você toca e de uma maneira bem informal, mas sem perder o rigor…
    Várias vezes reafirmamos o bar como espaço de resistência, de solidariedades, de encantamentos. Eu, inclusive, me utilizei dele para travar contato mais íntimo com as pessoas desconfiadas em Oaxaca ou me utilizo da sociabilidade que ele propicia para travar novas relações e fortalecer as velhas.
    Mas, gostaria de levantar algumas idéias, que ficam a assombrar meus pensamentos. É incrível como ao viajar pelo interior do país (e acreditem, São Paulo não é o centro do Brasil), e pelo interior de outros países, ou seja, ao viajar pelo interior das pessoas, a válvula de escape universal vem a ser o bar, o consumo do álcool, o consumo de drogas lícitas ou ilícitas. Seja como forma de “expandirmos” nossos sentimentos, seja para “relaxarmos”, seja para procurarmos companhia e podermos conversar com os nossos ou expormos sentimentos mais ou menos velados. Você quer conversar com seus amigos? Relaxar do trabalho? Paquerar? Dar vazão aos sentimentos reprimidos? Tudo implícito nas propagandas, consuma o teu “ócio” nem que seja num copo…
    O bar (e seus atributos) como válvula de escape à opressão capitalista pode converter-se em mecanismo de auto-alienação para suportar essa vida, afinal, necessitamos estar constantemente dopados, em estado letárgico.
    Não querendo ser moralista (até porque a prática não permitiria), mas qual é o limite entre o bar como fuga, como despertar de novas solidariedades, contatos, felicidades… e o bar como uma letargia na qual consumimos e nos consumimos para amenizarmos nossas frustrações?
    Até que momento vem a ser uma sensação sutil e passageira de liberdade e passa a ser uma outra liberdade – que já não deveria ser chamada enquanto tal – visto que transformada em mercadoria, aprisionada, seqüestrada e convertida pelo capitalismo, como o tempo-livre de maneira mais ampla, em um momento de sua reprodução?
    É curioso como por vezes não conseguimos criar espaços nos quais nos sintamos acolhidos no coletivismo e na solidariedade a não ser nos propriamente delimitados e enquadrados para tal.
    Na Argentina me chamou a atenção a prática de tomar Mate. Também no Brasil temos essa prática, é verdade, mas na terra dos “bolotudos hermanos” isso se dá de maneira distinta, pois as pessoas se encontram nas praças públicas para “tomar mate”, ou seja, para se reunirem, conversarem, rirem, namorarem…
    Sendo indispensável o escape, de que forma o reafirmamos?
    A recusa do ordinário pode vir acompanhada do caráter destrutivo que não constrói caminhos, mas nos afunda nos escombros dessas ruínas…
    Beijos e abraços,
    Alex

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